A startup chinesa DeepSeek emergiu no final de janeiro de 2025 como um divisor de águas no mundo da inteligência artificial (IA), sacudindo mercados de tecnologia globais e forçando uma reavaliação profunda de investimentos no setor.
Em poucos dias, essa inovação tecnológica de Hangzhou atraiu atenção mundial ao lançar um assistente digital gratuito que promete desempenho comparável aos melhores modelos de IA ocidentais – porém, alcançado com uma fração do custo e dos recursos tradicionalmente necessários.
A súbita ascensão da DeepSeek desencadeou quedas históricas nas ações de gigantes de tecnologia e levantou questões sobre a sustentabilidade da atual corrida por IA, trazendo à tona debates sobre eficiência, abertura de código e a própria dinâmica de poder no campo da tecnologia.
Inovação tecnológica trazida pela DeepSeek
A principal novidade introduzida pela DeepSeek foi a quebra do paradigma de que apenas modelos de IA gigantescos, treinados com investimentos astronômicos, poderiam liderar em desempenho.
Em janeiro de 2025, a empresa lançou a versão DeepSeek-V3, um modelo conversacional inteligente que foi disponibilizado de forma aberta (open source) e gratuita, e surpreendeu por operar com menos dados e hardware menos avançado que seus concorrentes, sem sacrificar qualidade.
Segundo a própria DeepSeek, seu modelo alcança resultados equivalentes ou superiores aos do GPT-4 (da OpenAI) em quase todas as 22 métricas testadas, perdendo em apenas 2 delas.
Essa eficiência decorre de inovações na arquitetura e treinamento: o DeepSeek R1, apresentado em um artigo científico de 22 páginas, demonstrou “comportamentos de raciocínio poderosos” e capacidade de ativar apenas partes relevantes do modelo para responder a cada consulta, reduzindo drasticamente o consumo de computação.
Um aspecto revolucionário é a transparência e abertura da plataforma. Diferentemente dos chatbots ocidentais tradicionais, o aplicativo da DeepSeek mostra seu raciocínio interno enquanto responde às perguntas dos usuários.
Usuários elogiaram essa transparência – uma abordagem que aumenta a confiança e o entendimento sobre como a IA chega a determinadas respostas.
Em uma demonstração marcante desse recurso, observou-se que o DeepSeek exibiu seus pensamentos censurados em tempo real: ao ser questionado sobre liberdade de expressão na China, o sistema inicialmente listou reflexões sinceras sobre censura e repressão, mas acabou suprimindo-as e se desculpando, provavelmente obedecendo às diretrizes do governo chinês.
Esse vislumbre do “pensamento” da IA evidenciou não só a capacidade técnica do modelo, mas também os limites impostos por questões políticas – algo geralmente oculto nos sistemas fechados como ChatGPT.
Além da transparência, a proposta de código aberto da DeepSeek é um marco. O modelo foi disponibilizado sob uma licença aberta permissiva, permitindo que qualquer interessado acesse o código e até mesmo adapte a tecnologia.
Essa decisão contrasta fortemente com a postura das big techs americanas, que mantêm seus algoritmos sob sigilo.
A história da tecnologia mostra que arquiteturas abertas costumam impulsionar a inovação e reduzir barreiras de entrada – casos como o padrão aberto dos PCs IBM nos anos 1980, o navegador Mozilla Firefox nos 2000, ou o sistema Android na década de 2010 ilustram esse efeito.
Da mesma forma, a abertura do DeepSeek democratiza o acesso à IA avançada, permitindo que desenvolvedores e empresas de diversos países experimentem e construam sobre essa base tecnológica sem os custos proibitivos de criação de um modelo do zero.
Marc Andreessen, renomado investidor de tecnologia do Vale do Silício, chamou o modelo DeepSeek R1 de “o momento Sputnik da IA” – uma referência ao choque estratégico de 1957 quando a União Soviética lançou o primeiro satélite.
Andreessen classificou o avanço como “um dos progressos mais surpreendentes e impressionantes” que já viu, considerando sua disponibilidade aberta “um presente profundo para o mundo”. Em suma, a DeepSeek inovou não apenas na engenharia de IA eficiente, mas também na filosofia de acesso a essa tecnologia, tornando-a mais inclusiva.
Impacto nos investimentos em inteligência artificial
A entrada triunfal da DeepSeek provocou um terremoto nos mercados financeiros ligados à tecnologia e IA. Em 27 de janeiro de 2025, logo após a divulgação do novo modelo, as ações das gigantes do setor despencaram globalmente, numa reação de pânico dos investidores diante do potencial “ponto de virada” que a DeepSeek sinalizou nos custos e estratégias de IA.
Nos Estados Unidos, o índice Nasdaq – fortemente ponderado em empresas de tecnologia – caiu em torno de 3% naquele dia.
A Nvidia, principal fornecedora de chips para IA, sofreu um golpe sem precedentes: queda de quase 17% no valor de suas ações e perda de cerca de US$ 593 bilhões em valor de mercado, o maior tombo diário já registrado por uma empresa em Wall Street.
Outros nomes de peso seguiram a tendência: Microsoft recuou mais de 2%, Alphabet (Google) caiu cerca de 4%, a fabricante de servidores Dell perdeu quase 9%.
Na Ásia e Europa, efeitos similares foram sentidos – empresas como ASML (equipamentos para chips) cederam 7-11%, e até conglomerados japoneses como SoftBank despencaram 8%.
Por que tamanha volatilidade? A resposta está na mudança abrupta de percepção sobre os investimentos necessários em IA.
Até então, prevalecia entre investidores a máxima de que “quanto mais gasto, melhor” em IA.
As maiores companhias – apelidadas de as “sete magníficas” (Apple, Microsoft, Amazon, Alphabet, Meta, Nvidia e Tesla) – vinham atraindo somas bilionárias sob a promessa de que seus colossais gastos em pesquisa e infraestrutura de IA trariam retornos igualmente colossais no futuro.
A própria Nvidia viu seu valor disparar nos últimos anos graças ao entusiasmo com IA, com suas ações acumulando +94% em 24 meses até janeiro de 2025.
Nesse contexto, o feito da DeepSeek funcionou como um banho de água fria nos investidores: ficou claro que modelos menores e equipes enxutas podem igualar ou até superar o desempenho de projetos muito mais caros.
Se uma startup desconhecida conseguiu com alguns milhões o que gigantes fazem com centenas de milhões, as premissas que sustentavam as avaliações altíssimas das big techs foram abaladas.
Muitos investidores, temendo estar diante de uma bolha inflada por gastos exagerados, correram para realocar recursos em ativos considerados mais seguros ou baratos, inclusive em mercados emergentes.

Gráfico mostrando a capitalização de mercado das “sete magníficas” (Big Techs) nos últimos anos, evidenciando a alta expressiva impulsionada pelo hype da IA em 2023-2024 e a volatilidade recente. A ascensão do ChatGPT em 2023 (seta no gráfico) marcou o início da corrida de investimentos massivos em IA.
Especialistas apontam que esse abalo inicial pode ter efeitos positivos de longo prazo no ecossistema. No curto prazo, é fato que houve alta volatilidade e perda de valor para empresas envolvidas em IA.
Fabricantes de chips de ponta como Nvidia, Broadcom e fornecedores de infraestrutura em nuvem (Oracle, Cisco etc.) enfrentam agora a perspectiva de redução na demanda por seus produtos, caso a indústria adote modelos mais eficientes como o da DeepSeek.
Há até quem projete riscos de supercapacidade: data centers caríssimos construídos para suportar modelos gigantes podem ficar ociosos, e uma queda na procura por hardware de alto desempenho poderia desencadear uma crise de excesso de oferta na cadeia de semicondutores.
Entretanto, essa “correção” no mercado também pavimenta um terreno mais fértil para inovação. Ao questionar a suposição de que apenas gastos colossais geram melhores IA, a DeepSeek pode estimular a busca por modelos mais baratos e focados, incentivando a eficiência sobre a força bruta.
Investidores de capital de risco e fundos que vinham apostando quase exclusivamente nas grandes corporações agora podem diversificar seu interesse para startups menores, visto que a barreira de entrada tecnológica diminuiu.
Analistas comparam o momento atual à explosão das fintechs ou startups de software na década passada: uma nova onda de pequenas empresas de IA pode surgir, aumentando a competição e desconcentrando o mercado dominado pelo Vale do Silício.
Vale notar que essa democratização tem alcance global. Países com infraestrutura limitada de IA, como alguns na Europa e mesmo o Brasil, vislumbram oportunidades na esteira da DeepSeek.
No Brasil, por exemplo, empreendedores veem a tecnologia aberta da DeepSeek como aliada potencial para desenvolver soluções locais, mitigando em parte a desvantagem de investimento e acesso a computadores de ponta.
Ainda que o ecossistema brasileiro de IA enfrente desafios (falta de infraestrutura e capital, escassez de talentos em IA, etc.), a disponibilidade de modelos avançados abertos pode reduzir o fosso tecnológico.
Startups nacionais não precisam mais “reinventar a roda” – podem adaptar modelos como o DeepSeek para aplicações específicas, o que atrai investidores locais interessados em soluções de IA direcionadas a problemas regionais.
Em resumo, a revolução da DeepSeek nos investimentos em IA consiste em deslocar o foco da quantidade de dinheiro gasto para a qualidade da inovação empregada, potencialmente tornando o campo mais competitivo, acessível e sustentável.
Competição com OpenAI, Google DeepMind, Anthropic e outros gigantes
A súbita relevância da DeepSeek colocou empresas consagradas de IA – como OpenAI (criadora do ChatGPT), Google DeepMind e Anthropic (do chatbot Claude) – em estado de alerta.
Até então, o setor de IA generativa era amplamente dominado por essas poucas empresas ocidentais, capazes de mobilizar investimentos bilionários e infraestruturas massivas de computação.
A DeepSeek, porém, rompeu essa dinâmica ao provar que uma startup ágil pode rivalizar com os líderes em termos técnicos e ganhar adoção em massa rapidamente.
Em apenas um fim de semana, o aplicativo da DeepSeek atingiu o topo dos downloads da App Store da Apple nos EUA e Reino Unido, ultrapassando o próprio ChatGPT em popularidade momentânea.
Isso foi um sinal claro de que os usuários estão abertos a alternativas – especialmente se estas entregam resultados equivalentes a um custo menor ou grátis.
Para a OpenAI, cujo modelo GPT-4 era referência de ponta, o desafio foi direto.
Executivos do Vale do Silício e engenheiros de empresas tech elogiaram publicamente os modelos DeepSeek-V3 e R1, reconhecendo-os como competitivos com as ofertas mais recentes da OpenAI e da Meta.
Marc Andreessen, no mesmo post em que evocou o “momento Sputnik”, chegou a dizer que o DeepSeek R1 é “20 a 50 vezes mais barato de usar do que o modelo o1 da OpenAI”, dependendo da tarefa.
Sob essa pressão, a OpenAI moveu-se rapidamente: apenas dias após o lançamento do DeepSeek, a companhia anunciou uma nova versão de modelo de “raciocínio” chamado ChatGPT o3-Mini, disponibilizando-o inclusive aos usuários gratuitos, numa aparente resposta para não perder terreno.
Sam Altman, cofundador da OpenAI, comentou que achava “revigorante ter um novo competidor” no campo.
No entanto, a postura elogiativa logo deu lugar a preocupações: a OpenAI declarou que estava investigando indícios de que a DeepSeek possa ter “destilado” indevidamente seus modelos (isto é, aprendido em excesso a partir de saídas do GPT, técnica conhecida como model distillation). Essa reação revela o quão acirrada se tornou a competição – qualquer vantagem da DeepSeek é escrutinada pelas rivais, seja para aprendizado ou para eventual ação legal ou regulatória.
No caso da Google DeepMind, a chegada da DeepSeek abalou a suposição confortante de que a China estaria “anos atrás” dos EUA em IA.
O DeepMind (divisão de IA avançada do Google) vinha trabalhando em modelos de próxima geração como o Gemini, com expectativa de desempenho superior mas igualmente sustentado por investimentos enormes e os melhores chips disponíveis.
Com a notícia de que a DeepSeek treinou seu modelo usando apenas chips Nvidia H800 (inferiores aos H100 de última geração) e mesmo assim atingiu alta performance com menos de US$ 6 milhões de custo, houve surpresa e ceticismo em todos os centros de pesquisa ocidentais.
Analistas comentaram que o lançamento do DeepSeek “desafia a noção de que a IA chinesa está anos atrás” e inclusive questiona a efetividade das sanções e restrições de exportação de chips dos EUA, já que a China conseguiu um outcome competitivo mesmo sem acesso aos componentes mais avançados.
O Google, que investe pesadamente em IA e controla pilhas de dados e poder computacional, certamente vê nessa virada uma mensagem clara: domínio em IA não está garantido pela liderança em hardware.
Representantes do mercado financeiro, como Charu Chanana (Saxo Markets), observaram que a concorrência está se intensificando; hoje a DeepSeek pode não ameaçar diretamente o império do Google, mas “futuros concorrentes evoluirão mais rápido e desafiarão as empresas estabelecidas com maior rapidez”.
Em outras palavras, a DeepSeek abriu caminho para que novos players – na China e fora dela – ousem competir com Google, OpenAI e outros em igualdade de condições técnicas, algo impensável há poucos anos.
Para a Anthropic, startup apoiada por gigantes como Google e dedicada a modelos como o Claude, o movimento da DeepSeek reforça a pressão sobre diferenciação e justificativa de custos.
A Anthropic se destacou por pesquisas em alinhamento e segurança de IA, e também por levantar recursos significativos (inclusive um aporte de US$ 4 bilhões da Amazon em 2023).
Porém, seus modelos, assim como os da OpenAI, são fechados e requerem infraestrutura pesada. Agora, investidores e clientes podem questionar: por que pagar caro por APIs proprietárias se uma alternativa aberta e barata chinesa oferece desempenho equiparável?.
Essa indagação já ecoa no mercado: conforme reportado, muitos começam a questionar o valor de mercado das grandes empresas de IA dos EUA frente à prova de conceito da DeepSeek.
Empresas como a Anthropic terão que enfatizar fortemente o que as torna únicas – seja segurança, confiabilidade, ou integração – para manter sua vantagem competitiva em um cenário onde open source de alto nível passa a ser uma realidade.
Por fim, a competição global em IA ganhou novos contornos geopolíticos. A DeepSeek conta com apoio tácito do governo chinês, que enxerga na iniciativa uma resposta estratégica às restrições americanas.
O fundador, Liang Wenfeng, chegou a se reunir com o primeiro-ministro Li Qiang, e autoridades locais participam da seleção de investidores para a empresa.
Enquanto isso, nos EUA, a administração federal tratou o sucesso da DeepSeek como alerta para redobrar esforços – o próprio presidente chegou a qualificá-lo como um “wake-up call” (chamado para despertar) para a indústria nacional.
Essa rivalidade incentiva investimentos públicos maciços em IA de ambos os lados: a China anunciou um fundo nacional de venture capital de 1 trilhão de yuans (US$ 138 bi) para tecnologias estratégicas como IA, ao passo que nos EUA, iniciativas público-privadas de centenas de bilhões (como o projeto Stargate, com Oracle e OpenAI) foram aceleradas.
Ou seja, DeepSeek acirrou a corrida, não só entre empresas, mas entre nações, pela supremacia na próxima onda tecnológica.
Em suma, a DeepSeek demonstra como inovação orientada à eficiência pode revolucionar um setor dominado por gigantes.
Em pouco tempo, essa startup chinesa abalou mercados, redefiniu estratégias de investimento e se posicionou ao lado de nomes como OpenAI, Google DeepMind e Anthropic no panteão da IA.
Seu legado emergente sugere um futuro em que tecnologia de ponta não será privilégio de poucos, mas resultado de um ecossistema mais aberto, competitivo e colaborativo – cumprindo, afinal, a visão declarada por Liang Wenfeng de tornar a IA “acessível e barata para todos”.
As big techs, antes confortáveis em seus domínios, agora precisam responder à altura a esse novo capítulo da inteligência artificial.
E para investidores e sociedades ao redor do mundo, a lição da DeepSeek é clara:
talento, engenhosidade e colaboração podem valer mais do que cofres cheios na busca pela próxima grande inovação tecnológica.